A proposta de reforma trabalhista que tramita no
Congresso Nacional em alta velocidade impede o debate necessário sobre o
sistema de relações de trabalho no Brasil. Há consenso de que é preciso adequar
o atual sistema às profundas transformações do mundo do trabalho, mas o modelo
proposto está longe de ser unanimidade. Apesar da pressa que parlamentares têm
para aprovar essa proposta, é possível afirmar que dá para construir uma outra,
na qual haja convergência, prevendo um novo sistema de relações de trabalho centrado
na negociação coletiva, com transição pactuada.
Um sistema de relações de trabalho e de direito
laboral normatiza e regula a relação entre trabalhador e empregador, trata
conflitos, define direitos trabalhistas, tem impacto decisivo sobre a
produtividade, além de determinar a partilha dos resultados da produção. Assim, pode alavancar processos
civilizatórios, cujos impactos influenciarão o papel do Estado, a economia e a
sociedade como um todo. Trata-se de uma construção social e histórica que, ao
organizar as relações de trabalho, é responsável, em grande medida, pela coesão
da sociedade.
Transformar um sistema de relações de trabalho exige
um compromisso coletivo sobre os objetivos e resultados esperados com a mudança,
bem como com o processo de transição para o novo. A avaliação dos múltiplos
impactos sociais e trabalhistas é fundamental. O consenso gerado pelo diálogo
também deve prever monitoramento de resultado e correção de desvios.
Um sistema de relações de trabalho organizado a
partir da negociação coletiva requer sujeitos coletivos que efetivamente representem
os interesses das partes. No centro da concepção desse sistema estão a criação e
a manutenção desses sujeitos e instituições, que atuarão sobre um conflito
permanente pela repartição da renda e da riqueza geradas pela produção e pelo
trabalho, e darão soluções, sempre parciais e provisórias, comuns a todo regime
democrático.
No estado democrático e de direito, o sujeito
coletivo que representa os trabalhadores são os sindicatos, que precisam ter os
instrumentos adequados para conduzir a negociação em condições de equilíbrio de
forças com o poder econômico. Estrutura, organização, financiamento, acesso à
informação, incentivo ao diálogo, mecanismos de solução voluntária e ágil de
conflitos, instrumentos de pactuação do acordado, bem como garantia do cumprimento
do acordo são algumas das condições que favorecem o sistema de relações de
trabalho baseado na negociação.
A abrangência dos acordos, ou seja, quais
trabalhadores serão beneficiados pela negociação, é uma escolha fundamental,
pois terá repercussão sobre a organização e o financiamento sindical. Um
sistema baseado na negociação coletiva deve garantir processos negociais do
local de trabalho até o nível nacional (empresa, categoria, setor).
A relação complementar e harmônica entre a
legislação trabalhista e o negociado e o papel da Justiça do Trabalho para
mediação, arbitragem e solução de conflito também são partes essenciais do novo
sistema.
No caso brasileiro, o sistema deve ainda considerar as
profundas desigualdades de condições entre trabalhadores e empresas, o que tem
impactos sobre as condições de trabalho e a capacidade real para gerar proteção
laboral. A informalidade é a situação limite que expressa essa desigualdade e
precisa ser enfrentada e superada.
O combate às práticas de precarização das condições
de trabalho, de jornadas excessivas, de atitudes antissindicais, entre outros
aspectos, devem fazer parte do desenho de um sistema de relações de trabalho
que valorize a negociação.
O sistema deve também gerar compromissos com o
desenvolvimento econômico das empresas e a repartição de resultados. Desenvolvimento
é sinônimo de incremento/repartição da produtividade, que é fruto da complexa combinação
entre o investimento na qualificação do trabalhador, a qualidade das condições
dos postos de trabalho, a tecnologia empregada no processo de produção, entre
outros fatores internos e externos à empresa ou organização. Para que seja
efetivo, é preciso que haja instrumentos que atuem na perspectiva da pactuação
de longos processos de mudança produtiva e de distribuição equitativa dos resultados.
Essas são algumas questões a serem consideradas no
desenho das mudanças do sistema de relações de trabalho. Tudo isso evidencia a
complexidade e repercussão econômica, política, social e cultural que as alterações
podem e devem provocar. Por isso mesmo, o desenho normativo do novo sistema
deve ser resultado de cuidadoso processo de reflexão e diálogo social.
Uma reforma deve buscar construir uma nova cultura
política nas relações laborais e, por isso mesmo, ser construída no espaço indelegável
do diálogo social e de ampla negociação que inclua todos os agentes econômicos
e políticos. Essa construção deve garantir compromissos com o novo modelo,
capazes de conduzir a transição e gerar confiança para enfrentar as incertezas geradas
pela mudança.
O sucesso de todo esse processo dependerá, em grande
parte, da estratégia de transição, que precisa incentivar a adesão e a
experimentação, promovendo e divulgando as boas práticas.
Efetivamente, todos esses elementos de conteúdo e
processo não estão presentes no projeto de reforma trabalhista apressadamente
aprovado pela Câmara e agora em análise no Senado. Ao contrário, o processo de
mudança em curso cria derrotados, promove intencionalmente desequilíbrios na
representação, inibe e impede a ação dos sindicatos, subtrai direitos e desvirtua
o acesso à Justiça do Trabalho. Construído fora do espaço do diálogo social, o
sistema que emerge dessa reforma acirrará os conflitos, aumentará a
desconfiança, fragilizará compromissos e trará mais insegurança. Esse é um
projeto de um país que está andando para trás.
Clemente Ganz Lúcio
Nenhum comentário:
Postar um comentário